quinta-feira, outubro 14, 2010

De novo, a Lua

O Homem não foi feito para a escuridão. O Homem tem nos olhos uma janela para o que deseja, para o que encontra, para o que teme e receia. Ama com os olhos e odeia também. O Homem precisa de luz, que, densa e ordeira como um rebanho de ovelhas, lhe oferece o mundo que é, o que foi, e sugerindo o que será. Na escuridão, o homem foge para o mundo dos sonhos, que é, ou assim o espera o Homem, luminoso. Senão, na escuridão, o Homem tem medo. O Homem chora.

Por isso veio a Lua. Todas as noites ilumina o breu, porém cada vez mais pequena, como que ameaçando a mais brutal das trevas. Chega aquela noite em que desaparece, e com ela o pânico aos corações daqueles que só a Lua têm por companhia e candeeiro. Mas logo na noite seguinte, a Lua reaparece. Brincalhona ela é, espreitando por entre o Manto Negro. E vai reaparecendo, no seu sensual vagar. O alívio. A sua noite mensal de Luz e Amor com o Sol, é noite de temor e angústia para o Homem. A sua noite mais solitária, é a mais luminosa para esses primatas que vivem no medo do medo. Talvez por isso ela nos minta, talvez até de ressentimento. Mas é uma mentira repetida, pelo que é uma verdade prevista. O Homem sabe que a Lua sabe que ele a lê ao contrário.
Precisamos tanto dela.
Eu preciso.
Hoje foi Lua Nova.

quarta-feira, outubro 13, 2010

Suspiro

"Das origens do tempo e do espaço, das profundezas do oceano, dos inatingíveis picos nevados, das inabitáveis gargantas dos vulcões, do infinito, vem o teu grito, oh musa da noite. Pincel em tela escura, pinta o manto que me ilumina! Bruma de claridade, chuva na estiagem. Clareira de pradaria, na floresta da morte. Primeira gaivota que voa da terra para o mar. O teu grito encanta e levanta e comanda, como as correntes no mar, e o vento no resto. O teu grita leva vida, paz, amor... Só não me leva a mim.” Suspira o eremita...

sexta-feira, agosto 27, 2010

Barba

É noite, e sinto a falta da minha longa barba. Tenho saudades de resolver os enigmas da vida pelo cofiar vagaroso dos meus pelos faciais. Encontrar beleza no funcionamento normal da natureza é bem mais fácil, quando se desfaz um nó entre os muitos que se formam nesta barba emaranhada.
Mas ela sempre cresceu, num movimento eterno, por certo ritmado pelas ondas do mar. Ou de um mar interior que devo cá ter. Quando ela parar de crescer, um oceano estagnou, e os meus olhos não estarão cá para ver.

Fuga

Acalma o animal que há em ti. Preserva um pouco do Mundo. Oferece-o aos que te visitam. Bloqueia os impulsos, para deixares sair os modos afáveis e cavalheirescos que usavas na outra vida. Até o mar te ajuda a nadar, porque não fazer alguém flutuar numa experiência excêntrica, o convívio com o excêntrico. Adapta o teu meio ao alienígena, porque, de facto, o alienígena és tu, lá de onde eles vêm. Hipocrisia? Nem a aranha é hipócrita quando tece a sua teia, que é sinónimo de morte. Guardo os teus grunhidos para espantar os predadores. Guardo os teus impulsos para proteger a tua vida. Se o teu pénis está erecto porque o Mulher cheira bem, disfarça e não tentes enfia-lo onde queres. Segue tu também, como espécime humano, um ritual. Sorte tens, que o teu ritual não é ridículo como o do pavão. Uma espalhafatosa plumagem, que o torna presa fácil. Mas não te iludas, porque também és presa fácil. Olha que o istmo que te une ao mundo, pode estar no contorno da anca de uma mulher.
Assim falaria o Sol, guardião do meu território, enquanto a minha pila palpitava ao ritmo das tesouradas que a mulher dava no meu cabelo. O sangue arrefeceu. Estava triste, mas conformado. Fala a voz da razão, o meu mundo chama-me, que precisa da minha contemplação, o meu olho de juiz. Desligado do Mundo dos homens estou, mas estou preso aos seus conceitos para sempre. A eterna contradição em que viverei. Pode parecer deslocada esta frase, a verdade é que poderia coloca-la em qualquer ponto deste relato.
Cabelo cortado e barba feita. Sem uma palavra, levanto-me e salto para o mar, de volta ao meu cantinho. A Mulher voltará ao seu porto, e falará disto que aconteceu. A excentricidade de um homem. Um anacoreta genuíno. Dirá que se sentiu atraída pelo maltrapilho ermitão? Gostaria de saber… Nunca verei a cor com que ela pintará o relato deste dia. Devo ser prático. O Pastor de Luz vai dormir em breve, e é difícil caçar no escuro.

quinta-feira, fevereiro 11, 2010

Umas Tesouras

Cinco minutos que pareceram cinco anos. Um sentimento de morte apoderou-se da minha alma, há tanto tempo excluída de qualquer contacto com uma mulher que não fosse a volúvel Lua, que todas as noites, indolentemente, se passeava pelo incaracterístico tecto do meu amplo quarto, aqui, em nenhures.
Lentamente recobro a lucidez perdida no momento do convite para subir a bordo. Umas tesouras! Há que tempos não uso qualquer ferramenta. Do Mundo trouxe apenas alguma roupa e um púcaro onde cozinho o que a Natureza me decida dar; onde preparo unguentos que curam as minhas feridas. E uma faca! Dá sempre jeito… E agora preparo-me para entrar numa máquina. Pistões, correias, bielas e cambota. Provavelmente um rádio transmissor, que mantém o tripulante atado ao Mundo como um cordão umbilical.
Cinco minutos que pareceram cinco anos, e estou a trepar pelas escadas de acesso ao convés do iate de quinze metros, com televisão, casa de banho (com água quente!) e quarto. E ali está o rádio transmissor, um tagarela por ora silencioso!
Já sentado numa cadeira, deixo-me tosquiar. Calmo como um cordeiro, sem falar. Com os olhos postos no chão vejo os cabelos que caem. Sedosos estão, porque a Mulher fez-me tomar um banho, como ela disse, a sério! Com champô e sabonete! No meu embasbacamento nem me ocorreu dizer-lhe que um banho a sério toma-se voando entre os peixes, no mar! Agora cheiro a flores das quais nunca captei o aroma. E vejo o meu cabelo a cair no chão… Não sinto nada, é cabelo…
Sinto, isso sim, o calor das pernas dela, quando elas se aproximam das minhas mãos, que deixei esquecidas sobre os joelhos. Há um torpor que me percorre o corpo. Nasceu do calor das coxas nuas que me cercam. A Mulher ainda está com o biquíni. Ah! Tão perto e tão longe! Mais agora, que as suas mão afagam a minha cara enquanto ela corta as minhas longas barbas! A volúpia que me ferve nas veias. Quanto eu queria beijar estes dedos estreitos e frágeis, mas há algo que bloqueia este impulso tão animal a que já me rendi. Um algo tão civilizado, tão humano, tão… social.
Pensava ter conseguido mais da minha reclusão.
Nada como uma Mulher para nos mostrar quem somos.

terça-feira, outubro 11, 2005

MORTE

O EREMITA MORREU.

sexta-feira, julho 22, 2005

O Depois

“O depois vem sempre depois”, portanto não há muito a fazer senão tomar decisões que devem ser rápidas, para que surtam algum efeito. Se demorar demasiado tempo aqui neste impasse, aqui, passivo, perderei a espontaneidade que demonstrei com aquele sorriso que lhe enviei. É neste processo de decisões e indecisões de que se tece a vida de um homem. Das mais banais ás mais influenciáveis audácias. Poderia agora encarnar a postura que tenho tomado até aqui, e pura e simplesmente apregoar uma crítica a mais um processo humano, e talvez sugerir uma cura. Estaria a ser coerente comigo mesmo. Que se fôda! Afinal não estou em momento de grandes coerências e resoluções de elevada idoneidade, na minha mente bailam os olhos que me observavam lá de baixo. E já agora, quem nunca foi incoerente? Está a saber-me bem sê-lo!
Desço á praia. Ela aguarda-me sentada num rochedo e observando a minha desenvoltura. Quando chego perto dela, diz ela assim, Já te vi cá antes. É verdade, eu lembro-me.

Arrasta-se o silêncio, quebrada pela questão colocada. Ela quer saber quem sou. Sinto-me tentado a dizer que não sou ninguém. Um eremita, respondo. Estás um pouco desactualizado. Se persegues a Santidade não estás na época oportuna para te isolares do mundo, por amor a Deus. Quero saber o que é preciso fazer para ser santo nos dias que correm. Fundires-te com as pessoas, e fazer algo positivo por elas. Não creio que seja preciso actuar em nome de divindade alguma para ajudar alguém. Podes fazê-lo apenas por missão pessoal. E de Deus eu não quero nada. Não sei quem é. Quando ainda estava no vosso mundo, sempre que me falavam d’Ele, achava estranho apregoar-se a misericórdia e a solidariedade ao mesmo tempo que se ofereciam punições e uma caldeira eterna aos incumpridores, para que estes fervessem lá dentro. Mas que raio de eremita és tu então? Sou um proscrito da vossa nova religião. O culto do Eu, iconizado em diversas vertentes. Estava farto de ser mais um, de ser algo para os outros (quanto mais não fosse um número) sem saber o que sou para mim. Uh! Uma viagem pelo interior… E ela disse isto com um brilho de ironia nos dentes brancos. Queres saber quem és? Não! Quero saber o que significa isto que eu sou. Todos sabemos como somos, basicamente. O que não sabemos é porque o somos. Que melhor sítio para sabê-lo do que o ventre de onde todos saímos? E como o fazes? Como descobres esse significando? Passa um tempo cá, sem qualquer ajuda exterior, ferramenta ou passatempo. Verás o que significa estar vivo, logo o que tu significas. Que descobriste? Luta e sacrifício. Mas isto encontras até mesmo na tua vidinha de rotinas e compromissos. Agora, contemplação, busca, descoberta. Olhar o Sol a deslizar pelo céu e imaginar para onde vai, onde passa a noite. A Lua, porque se vai esfumando ao longo das noites? Não tens um tecto tão sugestivo como o meu lá, de onde vens! O Sol não vai para lado nenhum, nem se esfuma a Lua. Já tive aqui um velho a apregoar ciência. Agora vens tu, bela, desmentir o que eu vejo. Do que me ensinaram, há muito me esqueci, ou o quis esquecer. Que me importa saber exactamente o que se passa lá com os Astros! A mim interessa-me o calor que um dá, semeador de Luz e Vida, pragmático. A companhia que a outra me propicia, ainda que distante, nas noites em que o ar parece impregnado de um qualquer humor que nos faz nostálgicos. A vida aqui dá-me o direito de imaginar o que quer que seja, ninguém me impõe limites.

Ela fica a olhar-me, pensativa. Os seus olhos cor de gelo aquecem. Depois sorri e diz, A tua barba e cabelo são fundamentais nessa tua busca? Não. Começam mesmo a tornar-se incómodos. Vem comigo ao meu barco…Tenho lá tesouras.

quinta-feira, julho 14, 2005

Reencontro

Ao regressar do meu passeio pelo bosque, eis que vejo algo familiar a flutuar na agra. Trata-se do barco que trouxe aquele efémero amor de que vos falei anteriormente.
Dirijo-me para a orla da falésia e, uma vez lá chegado, coso o meu corpo ao chão e observo, escondido, a mulher que toma banhos de sol deitada na areia, lá em baixo. Quando a vi pela última vez, o seu corpo era lácteo e baço. Agora está dourada e brilhante. Sobre os auspícios do Sol ela se transformou, e a imagem que me surge é a de um fruto a amadurecer até atingir aquela tonalidade que parece gritar: Colhe-me! Saboreia-me!
Mais uma vez, aquela presença abate-se sobre mim com a força de uma tempestade. Mais uma vez apela a algo que não é compatível com a existência que escolhi.
Rodo sobre mim próprio para ficar com as costas no chão. Preciso de um momento para reflectir sobre este fluxo que me percorre os nervos e as veias.
Sou forçado a retractar-me sobre o que pensei quando a vi pela primeira vez. Não, o Amor não é isto. Isto é apenas uma urgência! Urgência de lhe saltar em cima! O sexo. A parte mais animalesca do comportamento humano. O último elo que nos cinge há mãe Natureza. E é este último grau de pureza que me coloca novamente na esfera do Homem. Sou um deles ainda! Não a criatura sem sexo que colei á minha definição de eremita. A visão desta mulher abala convicções…
Volto a olhar para baixo. Ela observa-me. Acena-me. Eu sorrio. E agora?

“O depois vem sempre depois.”